Belo Monte e a eleição (Lúcio Flávio Pinto
editor do Jornal Pessoal)

No mesmo dia em que anunciavam o resultado da eleição geral realizada na véspera, graças a uma apuração ultramoderna, praticamente concluída apenas seis horas depois do fim da votação, os jornais da segunda-feira seguinte dividiam o espaço da cobertura política com notícias que pareciam se referir a outro país.
Era como se houvesse um muro invisível - mas efetivo - separando o mundo das representações do universo material. As criações simbólicas de um lado e a realidade concreta e viva do outro. A dissociação entre a política e a sociedade. Entre o aparato institucional, que regula e normatiza as relações sociais, e a vida cotidiana das pessoas. Entre poder e povo. Entre governantes e governados. Entre elite e massa.
A separação em si não é patológica nem privativa do Brasil: faz parte da natureza humana. O tamanho da distância entre os que estão no alto da pirâmide social e aqueles que mal os divisam, a partir da base, de onde raramente conseguem sair. é que constitui a principal marca do Brasil. Marca negativa. De um dos países mais desiguais que há. Apesar de toda a ascensão social promovida nos últimos oito anos pelo governo Lula, entre o nível da miséria e o estrato inferior da classe média.
O jogo democrático do dia 3 foi praticado, os eleitores compareceram às suas seções, onde poucos foram os incidentes, proporcionalmente ao tamanho do país e ao volume da sua população, e os votos digitalizados foram rapidamente totalizados (ainda sem a prova material do voto impresso, inovação simples, mas de efeito poderoso para afastar os receios quanto à manipulação dos programas da urna eletrônica). Antes que o domingo se encerrasse já se sabiam dos nomes de quase todos os eleitos ou daqueles que ainda se defrontarão num 2º turno, no dia 31. Poucas nações podem realizar um espetáculo desse porte.
No entanto, fica a sensação de que a substância das coisas não foi alcançada pela manifestação dos 111 milhões de eleitores brasileiros que votaram. Nem mesmo as formalidades do processo, conforme os parâmetros universais da democracia. A corte suprema deixou pendentes definições essenciais sobre a legitimidade da votação e a própria lisura da tutela jurisdicional do Estado.
O ziguezague das decisões sugeriu ao cidadão atento que o símbolo da justiça, aquela dama que decide com os olhos vedados para não distinguir os jurisdicionados, ministrando-lhes o direito sem favorecimentos, se tornou figura de retórica. Tantas esquinas, desvios e atalhos pelo caminho acabaram por produzir o bizarro: à última hora, o título eleitoral se tornou figura decorativa, supérflua, no processo eleitoral. Indispensável para a obtenção de passaporte ou admissão no serviço público, ele deixou de servir à finalidade da sua criação: ser o instrumento do voto.
A retórica continuou a ser a marca dos discursos, pautados pelos marqueteiros, esses esteticistas cosméticos. Os candidatos dizem o que seus conselheiros lhes recomendam. Os assessores, por sua vez, selecionam temas e palavras conforme os indicadores de preferência resultantes das pesquisas. A conseqüência é os discursos se distinguirem apenas por matizes, uma ou outra idéia mais extravagante, certo projeto desligado de qualquer elo com a realidade ou a factibilidade, apenas para provocar impacto e atrair expectativas favoráveis. Tudo conduzido com muita cautela para não contrariar a idéia que se tem do desejo do eleitor.
A maior surpresa na chegada ao dia da votação foi a suposta "onda verde" da candidata do PV, a senadora Marina Silva. A mensagem ecológica da senadora do Acre, porém, já antes exaurira o seu potencial sem chegar aos 10% das preferências. Suas idéias eram conhecidas e se encaixavam num quadro consolidado. A novidade foram as desastradas (ao menos da perspectiva dos marqueteiros) declarações sobre moral e religião da candidata do PT, Dilma Rousseff.
Nesse momento parece ter-se estabelecido na mente dos eleitores, por contraste quase automático, a imagem de Marina. Como evangélica, ela se tornou referência segura para aqueles que se movem por esses impulsos e repudiam o aborto e outros costumes em mutação na sociedade brasileira, ainda à procura de uma acomodação no receituário legal do país, que já não está em harmonia com a realidade..
A duplicação da votação de Marina a partir dos dias imediatamente anteriores à eleição deve-se à migração de parte do eleitorado de Dilma, por motivação moral ou religiosa. Nada teve a ver com José Serra, do PSDB. Pouca relação foi detectada com os indecisos ou os que iriam votar em branco ou anular deliberadamente seu voto. Nem com o reconhecimento, à última hora, de que as questões ambientais são sérias e precisam ocupar lugar prioritário na agenda do governo federal. Ou a exigência de que sempre que um projeto apoiado pelo poder público tiver impacto sobre a natureza e as populações locais, é necessário dar tanta atenção aos custos econômicos quanto aos ambientais e sociais.
Essa equidade inexiste. Tanto na ação em curso quanto nas promessas e compromissos dos candidatos. Tudo o que eles disseram sobre essas questões é variação ao redor dos mesmos pontos. O que os difere é a ênfase que dão a um projeto em detrimento de outro. A pauta não contém inovações. A história real continuará no seu rumo como se em 3 de outubro nada houvesse mudado. Nem mudará no próximo dia 31.
Enquanto noticiavam as alterações formais na representação política, os jornais do dia 4 prosseguiam a sua rotina de acompanhamento de situações que ficaram ao largo das pautas dos candidatos. E que se desenvolverão independentemente de quem venha a ocupar o Palácio do Planalto.
É assim que segue o cronograma dos dois maiores projetos em vias de implantação no país, ambos na Amazônia. Antes de o mês terminar, deverá estar instalado o canteiro de obras da hidrelétrica de Belo Monte, no rio Xingu, no Pará, com o licenciamento esperado do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis). A empresa vencedora da licitação espera começar a construir o porto e alargar as estradas vicinais de acesso ao canteiro. Antes do final do ano, espera dar partida à engenharia civil da usina de energia propriamente dita.
Como quem está falando do óbvio, simples e inquestionável, a Norte Energia anunciou que o custo de Belo Monte foi reduzido (ao menos nas planilhas oficiais) de 19,6 bilhões de reais para R$ 14,5 bilhões. Essa economia - nada insignificante - de R$ 5 bilhões foi possível porque, ao invés de dois canais concretados de desvio do rio, para levar a água diretamente à casa de máquinas, 50 quilômetros abaixo, será construído apenas um canal. Significa 70 milhões de metros cúbicos a menos de escavação. Assim, Belo Monte já não movimentará mais rocha do que o que foi registrado na construção do canal do Panamá.
A empresa não explicou como chegou a essa mudança no projeto aprovado nem lhe foram cobradas as informações sobre essa surpreendente modificação. Apenas o Ministério Público Federal advertiu o Ibama que, antes de licenciar a obra, precisa obrigar os responsáveis a cumprir as condições previamente estabelecidas em relação aos índios que moram na região. Sem isso, nada de licença ambiental. A engenharia civil e financeira do projeto não foi abordada.
O mesmo Ibama recebeu simultaneamente os estudos ambientais da hidrelétrica de Teles Pires, uma das cinco usinas que o governo pretende construir na bacia do rio Tapajós, começando pelo afluente em Mato Grosso. O instituto ficou de se manifestar até dezembro sobre esse EIA-Rima, relativo a uma hidrelétrica de grande porte, com capacidade para 1,8 mil megawatts, para que o governo faça logo a licitação. Se as outras quatro forem construídas, o Tapajós fornecerá mais energia do que Belo Monte, no Xingu.
Pará e Mato Grosso, que têm uma longa e polêmica divisa em linha seca, já estão acostumados (e, de certa forma, anestesiados) por conflitos decorrentes de grandes projetos. O Amazonas, o maior Estado da federação, é que vai começar a se defrontar com esses problemas. Exatamente quando o seu ex-governador, Eduardo Braga, que conquistou até fama internacional com sua "Zona Franca Verde", se elege senador e faz o seu sucessor no executivo amazonense, já no 1º turno.
Os jornais do dia 4 denunciaram que um garimpo clandestino está devastando floresta no sul do Estado, em área de um quilômetro quadrado, e degradando muito mais do que isso, causando erosão do solo, poluição da água por mercúrio e assoreamento das drenagens. A situação vai piorar porque 10 mil garimpeiros já estão no local e as notícias de ouro se espalham. Muitos outros aparecerão.
"Terra da floresta", com seus 1,5 milhão de quilômetros quadrados ainda pouco tocados, o Amazonas já está na mira do olho do satélite. O garimpo do Juma está em um dos 10 municípios do Estado com crescentes áreas desmatadas por extratores de madeira, criadores de gado, assentados e garimpeiros, segundo o satélite. A litania da destruição no Pará, Mato Grosso e Rondônia começa a se fazer presente na maior área contínua de floresta tropical da Terra.
Como os brasileiros e os seus representantes políticos acham que é assim porque tem que ser mesmo assim, não ligamos para o que acontece além dos nossos narizes e da viseira dos discursos. Talvez por isso o país não tenha visto qualquer utilidade em mandar representante para o encontro encerrado dois dias antes das nossas eleições, em Roterdam, o maior porto do mundo.
Nesse encontro, Estados Unidos, Holanda, Egito, Indonésia e Vietnã assinaram a "Aliança Delta". Comprometem-se a prevenir e combater os problemas que surgirem com o aumento do nível do mar e o aquecimento global. O Brasil tem, na Amazônia, o maior delta do globo, na foz do rio Amazonas, por onde são descarregados 8% de toda a água doce superficial.
Mas enquanto o mundo gira e a Lusitana roda, isso não passa de detalhe. O gigante adormecido não se deixa atrair por detalhes assim.

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