(Lúcio Flávio Pinto)Justiça do Pará acusada -Um cidadão de 86 anos acusa o poder judiciário do Estado de acobertar o roubo de um carro para proteger o sogro e o cunhado de um desembargador. A denúncia, encaminhada ao CNJ, atinge três desembargadores, seis juízes e uma promotora, além da polícia. É um libelo contra o poder público do Pará.

Nove integrantes do poder judiciário do Pará, incluindo três desembargadores e seis juízes (dos quais dois já foram promovidos ao desembargo), e uma promotora pública estadual, foram denunciados ao Conselho Nacional de Justiça, na semana passada. Ophir Alves da Silva os acusa de agirem mancomunados para proteger e favorecer o sogro e o cunhado do desembargador Ricardo Nunes Ferreira, que também é presidente do Tribunal Regional Eleitoral, a manter em seu poder uma camionete que ele e seu filho furtaram, de propriedade do filho do reclamante, Luiz Gonzaga de Oliveira da Silva.
Mesmo com todas as provas juntadas aos autos de dois processos – penal e cível – que tramitam há quase 10 anos no foro de Belém, atestando os métodos ilegais adotados por pai e filho para se apropriar do bem, o denunciante mostra, numa reclamação com 77 páginas e três volumosos anexos, que a justiça do Pará praticou os maiores absurdos até arquivar a ação cível e protelar o processo penal, ainda na fase de citação, três anos depois da denúncia.
Ophir da Silva acusa os magistrados de, ao deixarem “crescer e prosperar os ladrões”, contribuírem para que a imagem do judiciário paraense se torne “a pior possível”, cabendo ao CNJ “limpá-la ante os olhos da sociedade, pois o Poder Judiciário é nacional, e tudo o que aqui de podre se faz repercute em desprestígio da magistratura brasileira”. Pede a aplicação de diversas punições aos acusados, inclusive a “pena” (que aspeia no original) mais grave, que é a aposentadoria compulsória, com os proventos proporcionais.
A história começou em 23 de agosto de 2000, quando o filho do denunciante arrematou, em leilão da Justiça do Trabalho, uma camionete D-20, com seis anos de fabricação, por oito mil reais. Apesar de ter recebido no dia seguinte a carta de arrematação, só conseguiu que o oficial de justiça lhe repassasse o veículo sete meses depois. Durante esse período, o carro continuou a ser usado pelo cidadão que a justiça executou por dívida trabalhista.
Luiz Gonzaga circulou durante apenas um mês com o carro. Certa noite, quando dirigia por uma das vias públicas de Belém, “foi trancado por outro veículo e obrigado a parar”. Alberto Vidigal Tavares, “advogado que conhecia de vista da Justiça do Trabalho”, contando com a cobertura de “outros desconhecidos”, obrigou-o “a assinar um recibo em branco e, em seguida, roubou-lhe o veículo”.
Seis dias depois, com a confirmação da identidade do agressor, Gonzaga fez um boletim de ocorrência na delegacia de polícia do Jurunas, mas nenhuma providência foi tomada para lhe restituir o automóvel. Ao constatar a lentidão da polícia, Ophir, como procurador do filho, ajuizou uma ação de reintegração de posse do bem contra Alberto Vidigal e seu pai, Alberto Otacílio Valente Tavares, que – viria a saber depois – eram cunhado e sogro do futuro desembargador Ricardo Nunes, atual presidente do TRE. Sem advogado, recorreu à Defensoria Pública do Estado.
Seis meses depois a juíza Elizabete Lima Mendes, da 17ª vara cível da capital. deferiu a liminar de reintegração, mas na semana seguinte revogou a medida, com base nas provas juntadas pelos contestantes da ação. Ophir então a procurou para entregar a chave do carro. Ficou surpreso quando a juíza, ao chegar ao fórum, o convidou a acompanhá-la e se dirigiu ao gabinete do então juiz Ricardo Nunes.
Como a porta ficou entreaberta, o denunciante disse ter ouvido o diálogo entre os dois magistrados. A juíza quis entregar as chaves a Ricardo, mas o juiz a instruiu a ficar com as chaves, enquanto ligava para o cunhado, avisando-o para ir ao fórum e procurar Elizabete para receber de volta o carro.
Como a juíza revogara a liminar sob a alegação de que havia provas da transferência da propriedade da camionete, Ophir pediu ao Departamento Estadual de Trânsito que investigasse a documentação apresentada por pai e filho. O Detran atestou que não tinha havido qualquer transferência de propriedade, sendo falsos os documentos. Só então, um ano e meio depois da reclamação, o inquérito policial foi instaurado. A falsidade estava provada por perícia do Instituto Renato Chaves.
Mesmo com a falsificação dos documentos de transferência, os dois Albertos tinham um problema: a propriedade do veículo resultara de uma arrematação judicial. Eles tentaram conseguir um novo auto de arrematação, a pretexto de que Luiz Gonzaga estava em local incerto e não sabido, por isso não podendo lhes entregar o documento. O juiz da vara trabalhista de Ananindeua se recusou a deferir o pedido: os atos negociais entre o peticionante e o arrematante “não podiam proporcionar qualquer ônus à justiça do trabalho”, decidiu.
Mesmo com a negativa, os dois acabaram conseguindo uma via original do auto de arrematação. Não pela via regular, conforme atestou a juíza Paula Maria Soares: “não consta nos autos a entrega do original do Auto de Arrematação para outra pessoa além do arrematante, Sr. Luiz Gonzaga Oliveira da Silva, até porque este não é um procedimento correto”, declarou ela. Se Gonzaga continuava com a posse do seu documento, de onde fora extraído o auto juntado pelos dois Albertos?
Do processo ou do arquivo do juizado. Obviamente, alguém com acesso à vara subtraíra o documento e o entregara de forma ilícita. Ophir pediu a instauração de inquérito para a apuração desse fato. Como não foi atendido até hoje, apesar de reiterados apelos, recorreu à Defensoria Pública da União, que vai acionar a Justiça do Trabalho.
Em novembro de 2002 o delegado de polícia Jorge Otávio Novais de Souza encerrou seu inquérito. Considerou procedente a denúncia de Luiz Gonzaga “de que as assinaturas apostas no verso da DUT em questão e na Procuração outorgando poderes para Márcio [o despachante Márcio André da Silva, que intermediou a fraude e já tinha antecedentes criminais sobre esse mesmo tipo de delito], são realmente falsas”. Indiciou os três em crime de falsidade ideológica, “esquecendo-se, porém, de que a falsificação das assinaturas do filho do reclamante na DUT e na procuração outorgada ao despachante se deu para acobertar os crimes de roubo do veículo e de falsidade ideológica do recibo de compra e venda”, disse Ophir na longa e indignada representação ao CNJ.
De qualquer maneira, o inquérito chegou à justiça e foi distribuído para a 4ª vara criminal de Belém. Mas a promotora Ociralva de Souza Farias só ofereceu a denúncia quase seis anos depois, em setembro de 2008. “Por pouco não se verificou a prescrição do crime pela pena em abstrato”, observou Ophir.
Passados dois anos e meio, porém, os réus ainda nem foram citados. O oficial de justiça alega não encontrar Alberto Vidigal Tavares e sua advogada, Aurora Lopes, embora ambos atuem como procuradores na ação cível de busca e apreensão, circulando pelo fórum de Belém. Por causa desse procedimento, Ophir garante: “Se o CNJ não agir logo, a ação criminal vai ser extinta em razão da prescrição”.
A ação de busca e apreensão do veículo parecia que teria melhor rumo. Em 2003, diante das provas dos autos, o juiz Jonas da Conceição Silva proferiu sentença de mérito em favor do filho do reclamante. Em janeiro do ano seguinte o veículo foi devolvido a Gonzaga. A decisão transitou em julgado, mas a nova advogada constituída pelos Tavares pediu a republicação do ato e a devolução do prazo porque a resenha não incluíra o nome do representante dos réus.
O pedido foi atendido. Imediatamente conseguiram suspender os efeitos da sentença através de mandado de segurança, concedido em liminar pela desembargadora Izabel Benone. Ela que determinou que o veículo fosse recolhido ao depósito público até a definição de mérito da questão.
Ao invés de serem contatados por num oficial de justiça, Ophir e seu filho foram surpreendidos pelos dois Albertos. Eles repetiram o gesto anterior, se apossando da camionete, desta vez contando não apenas com seus seguranças, mas com o auxílio de uma nova advogada, Ana Carla Murrieta de Oliveira, filha da desembargadora Ana Sereni Murrieta, “bem conhecida do CNJ por atos de corrupção”, observa Ophir. Murrieta foi aposentada compulsoriamente por ter-se apropriado de dinheiro depositado em contas da justiça em função de litígios sob sua jurisdição.
Ophir comunicou à desembargadora que os réus “fizeram a busca e apreensão, usurpando função pública, em proveito próprio”. Praticaram vários crimes ao se apossarem do carro de forma violenta, sem mandado, e constrangendo pai e filho dentro de sua casa, enquanto fugiam, aproveitando-se da idade avançada de Ophir e de sua limitação, depois de ter feito cirurgia cardíaca. Os dois Tavares continuaram a circular com o carro, sem nunca o recolherem ao depósito público, embora tivessem se comprometido com o oficial de justiça a cumprir a ordem judicial.
Ophir representou contra os advogados Alberto Vidigal e Ana Murrieta ao então presidente estadual (hoje, nacional) da Ordem dos Advogados, Ophir Cavalcante, que o tratou, “a princípio, com cortesia”. Procurou-o depois várias vezes, “mas nunca foi atendido por ele, como ele havia prometido”. A OAB do Pará concluiu “pela inexistência de elementos na denúncia que comprovem infração ético-disciplinar”. Ophir da Silva continuou a sustentar sua posição: os dois advogados “não só cometeram desvios éticos, mas também ilícitos penais: furto, calúnia, usurpação de função pública e coação no curso do processo”. Mas não foi atendido.
“Já no desespero”, o chefe da Defensoria Pública de Entrância Especial, Júlio De Mais, responsável pela causa, denunciou a conduta criminosa dos dois advogados ao então presidente do Tribunal de Justiça do Estado. desembargador Milton Nobre (atualmente integrante do CNJ) respondeu que a presidência do TJE não tinha competência para atender o pedido, remetendo o caso ao juízo da 17ª vara cível.
O processo da busca e apreensão prosseguiu na sua tramitação acidentada. Atendendo a um apelo dos dois Albertos, que requereram a nulidade da sentença, a juíza Maria Antonina Athayde do Carmo desconstituiu a decisão do juiz Jonas para que os réus pudessem se defender das acusações, o que eles acabaram não fazendo. Não chegaram nem a apresentar testemunhas.
A única, indicada pelos autores, só foi ouvida como informante porque a juíza não deixou que prestasse juramento, alegando que seria amiga das partes. Valendo-se de algumas contradições do depoimento dessa testemunha (mas não das contradições dos réus) e ignorando as provas oficiais que existiam nos autos, a juíza considerou improcedente a ação de busca e apreensão, “por falta de provas”.
O processo subiu para o tribunal apreciar o recurso de Luiz Gonzaga contra a decisão. Dois desembargadores se declararam suspeitos, por motivo de foro íntimo, obrigando a Defensoria Pública a peticionar ao vice-presidente do TJE para que o feito fosse redistribuído “a um magistrado que pudesse realmente julgá-lo”.
A desembargadora Carmencin Cavalcante devia ter assumido a causa, mas observou que a desembargadora Luzia Nadja Nascimento estava preventa para receber o processo, por ter relatado o acórdão do mandado de segurança. Como Luzia saíra da 3ª para a 5ª câmara cível isolada, pela norma regimental do TJE os autos deviam ser entregues à magistrada que a substituíra.
Ao invés disso, a desembargadora Luzia Nadja recebeu o processo e, “com violação ao princípio do devido processo legal”, em abril do ano passado proferiu sentença monocrática (individual), extinguindo a apelação de Luiz Gonzaga sem julgamento de mérito, sob a alegação de extemporaneidade do recurso da Defensoria Pública.
Nos autos constava uma certidão da diretoria de secretaria da 17ª vara cível atestando a tempestividade do recurso e, por isso, o recebendo. Mas a desembargadora argumentou que havia uma data (28 de maio) na papeleta do protocolo do recurso, outra (11 de abril) na certidão de intimação pessoal do defensor público e uma terceira (24 de abril) na juntada do mandado aos autos. Concluiu de imediato que estava “evidente a extemporaneidade do recurso”, que, assim, se tornou inadmissível, por estar fora do prazo legal.
No entanto, nos próprios autos está anotado que o mandado foi juntado em 27 de abril e não no dia 24, como certificou a diretora de secretaria, por erro de redação, do qual não se apercebeu, tanto que atestou que o recurso era tempestivo e o recebeu. Argumenta Ophir que, diante da dúvida, a desembargadora Nadja deveria ter pelo menos convertido o julgamento em diligência para que a diretora de secretaria se pronunciasse, “e não julgar na incerteza, como o fez”. Se verificasse a prova contida nos autos, constataria que o dia 27 foi uma sexta-feira e o prazo só começou a contar na segunda-feira, 30, sendo tempestivo o recurso.
A decisão individual da desembargadora Nadja não foi contestada porque o advogado Bruno Vasconcelos havia pedido vista nos autos e teve seu pedido deferido pela desembargadora, sem o conhecimento do filho do reclamante ao CNJ. Já à Defensoria Pública, que vinha atuando no processo, era expedido “um ofício sem nexo”;
Bruno não fez carga do processo e a Defensoria, julgando que Gonzaga constituíra novo advogado, deixou de se manifestar. Bruno havia sido indicado como advogado apenas no processo penal, isso porque a Defensoria se recusou a patrocinar Gonzaga por não atuar no processo penal no pólo ativo, função desempenhada pelo Ministério Público. Assim, Gonzaga perdeu a causa cível, que transitou em julgado.
Ophir Souza investe contra o atual presidente do TRE, acusando-o de ter-se valido dos seus poderes para proteger Alberto Vidigal antes mesmo que a questão chegasse ao judiciário: “A visita do juiz Ricardo Ferreira Nunes ao delegado de polícia encarregado de apurar os fatos teve o propósito de barrar a instauração do inquérito e impedir a realização das investigações”, garante. A polícia nada fez até receber o inquérito do Detran, obrigando-a a processá-lo, “o que indica que realmente o juiz Ricardo Ferreira Nunes esteve na Polícia e convenceu o delegado a abafar o caso”, relata Ophir ao CNJ.
Diz que o desembargador Ricardo Nunes “influenciou os seus colegas juízes para que decidissem o litígio sobre a propriedade do veículo em favor dos seus parentes”. A primeira medida judicial foi em favor de Gonzaga, garante seu pai, porque a juíza a concedeu sem ouvir a parte contrária. Mas a liminar caiu uma semana depois, quando os dois Albertos, “após tomarem ciência do processo, maquinaram juntamente com o juiz Ricardo Ferreira Nunes uma forma ilícita de recuperarem a posse do veículo”.
O alvo das maiores críticas é a juíza Maria Antonina do Carmo, que negou a ação de busca e apreensão do carro por falta de provas. Ophir, porém, diz que “todas as provas do mundo foram apresentadas no processo demonstrando o roubo do veículo, a fraude no recibo de compra e venda, a falsificação das assinaturas do filho do reclamante, a falsidade ideológica de Alberto Otacílio Valente Tavares no requerimento apresentado ao juízo do Trabalho de Ananindeua, etc.”.
Ophir pede ao CNJ que puna exemplarmente a juíza com a pena maior prevista, que é a aposentadoria compulsória. É a mesma punição que requer para o desembargador Ricardo Ferreira Nunes, que também deveria responder a inquérito policial “para apurar os atos criminosos que ele teria cometido, “no intuito de auxiliar o seu sogro e cunhado a se livrarem da responsabilidade penal pelo roubo do veículo do filho do reclamante e a tornar seguro o proveito do crime, isto é, a posse do veículo roubado”.
Aposentadoria compulsória requerida também para as desembargadoras Maria de Nazaré Gouveia dos Santos, Maria de Nazaré Saavedra Guimarães (que eram juízas quando atuaram no processo) e Luzia Nadja Guimarães, mais os juizes Altemar da Silva Paes e Elizabete Lima Mendes, por não reunirem “condições morais para o exercício do cargo”.
Quanto aos desembargadores Milton Nobre, então presidente do TJE, e Maria Izabel de Oliveira Benone, já aposentada, acusa-os de terem deixado de comunicar à polícia os crimes praticados pelos advogados Alberto Vidigal Tavares e Ana Carla Murrieta, mesmo sendo informados dos fatos. Ao ignorarem a comunicação, “se omitiram no cumprimento do dever para favorecerem, ou pelo menos para não prejudicarem, os parentes do colega magistrado Ricardo Ferreira Nunes, e, por isso, também incorrem em ato incompatível com a dignidade e honra da magistratura”.
Diz o reclamante que por causa desses magistrados, ao deixarem “crescer e prosperarem os ladrões, que a imagem do judiciário paraense é a pior possível, e cabe ao CNJ limpá-la ante os olhos da sociedade, pois o Poder Judiciário é nacional, e tudo o que aqui de podre se faz, repercute em desprestígio da magistratura brasileira”.
A palavra agora está com o Conselho Nacional de Justiça.

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