(por Lúcio Flávio Pinto Dil)Dilma: com seus pés ou ainda teleguiada?

A presidente Dilma Roussef continua a ser uma esfinge, uma charada. A má vontade de parte da imprensa ou o excesso de boa vontade de outra parte para com ela, rejeitando-a ou a aceitando como premissa em qualquer análise, não ajudam o cidadão comum a avaliá-la corretamente. Ela já age com autonomia e competência ou continua a ser teleguiada por Lula, um instrumento dos projetos políticos de longo prazo do seu antecessor (e, se esses projetos derem certo, sucessor, para a concretização de uma ambição que se frustrou entre os tucanos do PSDB: o PT no poder máximo da república por pelo menos 20 anos).
Um exemplo para fundamentar as dúvidas ou suspeições. Ao chamar de volta ao governo o embaixador Celso Amorim para substituir o advogado Nelson Jobim na chefia do Ministério da Defesa, a presidente disse que foi motivada pela pessoa do escolhido e não pela sua gestão nos oito anos de Lula na presidência, como ministro das Relações Exteriores.
A frase, com fundamentação filosófica, seria mensagem cifrada, a exigir decodificação. Significaria que, no íntimo, Amorim discordava do que fez como chanceler de Lula, limitando-se a cumprir ordens superiores, das quais divergia? Logo, os ministros militares, apreensivos pela escolha do seu novo superior, deviam se desfazer dos seus receios quanto a um chefe esquerdista. Como pessoa, Amorim é confiável, capaz de manter o status quo ante, cumpridor de ordens. Não vai desviar a Defesa do rumo que seguia sob Jobim. Os ministros militares estariam atendidos.
Se é assim, a mensagem não é verdadeira. Claro que Amorim foi o fiel e exemplar executor das diretrizes de Lula. Mas jamais insinuou qualquer dissociação pessoal dessa orientação. Promoveu com entusiasmo a aproximação do Brasil do Irã e a aliança com a Venezuela de Chávez e os demais governos “populares” do continente latino-americano. Também – e por conseqüência – confrontou os Estados Unidos e conduziu a política exterior brasileira por uma linha independente.
Mas não com coerência ou por uma diretriz ideológica, como o “terceiromundismo” de Jânio Quadros ou o antiamericanismo (e germanismo) do general Geisel, posto em prática pelo ministro Azeredo da Silveira. Embora apregoando autonomia, Lula foi um interlocutor contumaz do presidente George W. Bush. Não tanto por parcerias internacionais, mas pela proximidade de estilos na condução dos assuntos internos de cada país. Ambos os presidentes cultivavam a imagem de “pessoas” (para usar a nova categoria conceitual da presidente Dilma, ainda que não explicitada metodologicamente) sinceras e devotadas ao povo. Ainda que rústicas ou grosseiras, sensíveis ao social, habeas corpus para a face gastadora das suas personalidades, cuja herança já está onerando Barack Obama e – ainda não se sabe a que ponto (e profundidade) – começa a afetar Dilma (inclusive pela ineficiência da imprensa em apurar e relatar fatos essenciais).
Ao elogiar seus antecessores, até mesmo o desastrado (ou cínico) Jobim, Celso Amorim, avalizado por Dilma, tenderá a manter a distância entre a retórica e a realidade, elemento de continuidade dos últimos governos federais. Dentre as várias especulações feitas em torno das sucessivas frases de efeito (ruim) de Jobim, uma não substituindo necessariamente a outra, ao menos em tese, mas com boas possibilidades de serem cumulativas (fazer o jogo do PMDB, do PSDB ou de Lula), foi dito que o ex-quem-sabe-futuro-de-novo político gaúcho teria encontrado a fórmula – embora heterodoxa – de abandonar o cargo por não ter realizado suas principais metas. Dentre elas, a compra, na França, destino frequente de suas constantes viagens, dos caças e submarino para reequipar as forças armadas brasileiras.
A pauta da Defesa não chega a ser completamente diferente ou antagônica à do Itamaraty. Pelo contrário: em muitos dos seus itens, são complementares – ou deviam ser, se houvesse um arcabouço doutrinário e uma visão de densidade geopolítica em Brasília suscetível ao conhecimento dos cidadãos. O programa nuclear é um desses pontos vitais. O Brasil, é claro, não tem ação mundial, como os Estados Unidos. Mas tem decisiva importância continental. O país quer e tem o direito de deter a tecnologia nuclear completa, inclusive para a fabricação de bombas.
Como essa aspiração é herética aos olhos de Washington, parte do programa nuclear, de intenções bélicas, é paralelo, ou clandestino. Não há alternativa que permita seu desenvolvimento sem a reação de hostilidade e represália dos EUA. Mas está declarado na constituição brasileira que a nação não construirá artefatos de agressão nuclear.
Poderá ter a tecnologia, pronta a acabada, como elemento de dissuasão e de equilíbrio. Para isso, terão que andar juntas as partes científicas, militares e diplomáticas. Além do domínio do know-how, é preciso de boa inteligência para saber o que fazem os que, não tendo também a bomba, do mesmo modo conhecem o seu processo. Como nossa vizinha Argentina e, quem sabe, a também vizinha (ainda que na distante e incompreendida fronteira amazônica) Venezuela. Sem verdadeira autonomia, capaz de eliminar dependência ou parceria automática, o Brasil não será a potência a que aspira, mesmo em escala menor do que as superpotências.
Um analista exigente tem dificuldade de chegar a uma definição a respeito porque entre Brasília, os gabinetes e escritórios privilegiados e a praça do povo há imensos ruídos, uma poluição sonora densa e constante, provocada por manipulações deliberadas de informações, balões de ensaio, preconceitos, cumplicidade, conforme os personagens estejam dentro ou fora do governo.
Rastreando os fatos atrás do seu significado, fica-se a meio caminho entre a verdade oficial e a versão da oposição institucional. Nada há de novo nessa configuração política, a mesma de muitos outros países. O problema é a ausência de interlocução e arbitramento competentes, autônomos de verdade.
Multiplicam-se as perguntas não respondidas sobre Dilma, mais de um semestre depois da sua posse. Como “pessoa”, ela é competente e sincera? Em abono da primeira qualidade, pode-se apontar uma iniciativa de mérito tão evidente quanto tardia: o início da desoneração das folhas de pessoal das empresas. Essa é a melhor (e deveria ser a mais imediata) medida que o governo podia ter adotado. Por enquanto, quatro setores terão suas folhas de pagamento reduzidas da incidência tributária de 20% para 2%. No próximo ano o benefício poderá ser estendido a outros segmentos.
Entende-se que o critério do emprego máximo se aplica aos setores de calçados, confecções e móveis. Mas como explicar a inclusão do software? Só se por outro critério: o estímulo à melhoria da qualidade. Programa de computador requer menos gente, porém gente qualificada. O problema é que é baixa a competitividade interna e internacional desse setor. A mera redução do gasto com empregados vai lhe dar essa nova condição? É uma dúvida.
Em volume, contudo, o setor mais beneficiado é o automotivo. O governo pretende combater a importação de carros, que já responde por 28% das compras dos brasileiros. O complicador dessa equação é que o importador costuma ser também um fabricante nacional de veículos. Para que importe menos, ele ganhará mais incentivos do governo. Logo, seu lucro será maior.
Mesmo que essa vantagem seja compensada pela redução dos preços ao consumidor (o que não está acertado), essa política vai piorar as condições de vida do cidadão, especialmente nas grandes cidades. Uma cidade brasileira, São Paulo, já é a que mais tem carros no mundo (e mais helicópteros também). Além de infernizar o trânsito, essa política representa subsídio àqueles que estão no topo da pirâmide social, fabricando ou comprando bens de consumo durável, de luxo.
Um circuito de renda fechado, muito maior do que o promovido nas faixas situadas no pé da pirâmide. É claro que esta distribuição tem importância e costuma ser inédita nos anais da história nacional, mas é a compensação (ou mitigação, conforme o jargão ecológico, aplicado ao econômico e ao social) pelo privilégio conferido aos mais ricos. É pedágio maior, mas pedágio sempre.
Esse contraste ficou evidente num ato público do qual a presidente participou em Juazeiro, no interior da Bahia. Era a maior solenidade do programa Minha Casa, Minha Vida. Foram entregues casas a 1.500 famílias de uma vez. Casas de 40 metros quadrados, ainda inconclusas. Dilma se irritou com um repórter que, ao lhe fazer pergunta, se referiu às “casinhas”. Investiu contra o importuno (“você deve ter casa grande”) e reagiu com argumentos emocionais sobre o valor da moradia para o povo, qualquer moradia.
De certa forma a presidente teria razão. Romulo Maiorana Júnior, o poderoso empresário e condutor da opinião pública paraense, não está vendendo como imóvel de luxo apartamento que tem apenas o dobro dessa área, num subúrbio de Belém? Numerosas outras empresas fazem o mesmo, na capital paraense e em outras cidades do país, recorrendo a artifícios para sugar a classe média, dando-lhe a oportunidade de ter uma residência em prédio supostamente nobre. O governo replica o procedimento com sua clientela preferencial, ainda mais suscetível a esse tipo de manipulação.
Mas a presidente, com seu lugar na história garantido por ser a primeira mulher a ocupar o mais elevado cargo da administração pública no Brasil (depois do Chile e da Argentina, para ficarmos no nosso continente), acredita no que diz e só diz o que checou? No mesmo dia em que inaugurou a vila popular em Juazeiro, ela disse em Salvador que o Brasil está mais preparado para enfrentar a nova crise do que a de 2008 (da qual a que se prenuncia é uma continuação).
Assegurou que se nos faltarem créditos internacionais, pela retração dos grandes mercados, já erodidos, temos poupança interna. E citou números. O Brasil tem mais de 348 bilhões de dólares de reservas internacionais, às quais se agregam 420 bilhões de reais de depósitos compulsórios dos bancos, retidos em caixa. Essas grandezas seriam realmente tranqüilizadoras se não se soubesse que parte dos recursos congelados no Banco Central, oriundos dos bancos privados, resulta de empréstimos internacionais.
Boa parte do dinheiro que circula no Brasil tem origem em poupança feita no exterior, que entrou no país à cata do melhor rendimento oferecido no mercado mundial. É óbvio que enquanto for mantida essa taxa de juros (ela pode até crescer, conforme o temor manifestado pelo presidente do BNDES, Luciano Coutinho), não haverá debandada. O que haverá será sangria financeira.
Parte dessa hemorragia continuará a ser drenada para os países de origem. Outra parte, para os bolsos de sempre. Novos bolsos foram incorporados pelo governo do PT a essa ciranda de ganhos imoderados, mas o que lhes é destinado é o troco dessas operações bilionárias. O resto é confeito, maquilagem, a cereja do bolo. O Brasil ainda não sabe exatamente quem o dirige, hoje. E sabe mais sobre quem o dirigirá logo depois.

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