O estigma Barbalho(Por Lúcio Flávio Pinto) -

O Pará está voltando a ser a terra sem lei, sem respeito, sem liderança autêntica, sem valores coletivos. Repetem-se as violências e aprofundam-se as violações aos direitos. Pela omissão dos principais personagens, os coadjuvantes avançam. É uma perspectiva perigosa.

Setores da opinião pública rejeitam o retorno de Jader Fontenele Barbalho ao poder, por considerá-lo nocivo à vida pública brasileira, São abundantes os argumentos em defesa dessa posição. Mas serve menos ainda ao interesse público exercê-la impedindo a execução da lei, a pretexto de que ela favorece um péssimo cidadão.
Pela norma legal e a definição do Supremo Tribunal Federal, Jader Barbalho devia ter sido diplomado senador ao fazer a primeira provocação a um dos ministros do STF. A decisão da corte, de que a lei da ficha limpa não podia ter vigência na eleição do ano passado, foi considerada de alcance geral. Logo, tem que ser acatada por todos e qualquer um dos membros do poder judiciário, quando provocados sobre seu cumprimento.
Quatro ministros já se recusaram a cumprir a decisão. Alegaram que a medida não pode ser adotada monocraticamente, por um juiz singular. É preciso o referendo do colegiado. A tese não é apenas um sofisma: constitui clara e insustentável violação da hermenêutica jurídica mais elementar. Consagra princípio que não consta dos códigos, o jus neolítico: posso, quero, faço.
Jader é persona non grata para os ministros do STF que votaram contra ele (e a favor de uma interpretação que o prejudica). Os demais não querem desunir a corporação ou assumir um papel antipático, preferindo esperar por uma nova reunião do colegiado, que não se realiza porque o relator original, ministro Joaquim Barbosa, nunca termina suas sucessivas licenças médicas. E quanto à lei? Ora, a lei. Ao vencedor, as batatas (ou, numa atualização de Machado de Assis, as baratas).
Qualquer exceção admitida nesse momento processual é um atentado àquilo que a ordem jurídica serve de sustentação: a ordem democrática. Qualquer desvio do império da norma é um atalho para o despotismo. Logo, são atitudes inaceitáveis.
Se o grau de violações cometidas pelo ex-quase-futuro-senador paraense é de tal ordem que o público e notório dispensa os ritos da prova da verdade, o que o Supremo (e, na cascata, as instâncias judiciárias inferiores) deve fazer é acelerar a decisão sobre os processos em que Jader Barbalho é parte.
Se já há provas suficientes nos autos das ilicitudes e delitos penais por ele cometidos, que se providencie logo a instrução dos processos para que cheguem ao trânsito final das sentenças – e, pela força da lei, o ex-governador pague por seus malfeitos, devolvendo o que porventura tiver subtraído do erário e cumprindo as penas estabelecidas.
A morosidade no andamento das causas e a protelação das providências cabíveis servem tanto aos interesses do réu, sobretudo para beneficiá-lo pela prescrição, como aos inimigos da sociedade, aqueles que se vestem de cordeiros e são, por trás de mal costurados disfarces, lobos tão ou mais insaciáveis do que o senador. E ainda se beneficiando da sombra ruim que ele projeta, sob a qual gatos pardíssimos se tornam pretos e o reluzir de personalidades fúteis sugere ouro, embora não passe de vulgar pirita (o chamado “ouro dos tolos”).
Está na hora de se colocar um fim nesses matizes furta-cor e nessas sombras oportunistas. O judiciário faz bem à nação quando cumpre a lei e produz a verdade, não quando se permite entrar no jogo de um maquiavelismo primário, como o que O Liberal pratica em Belém, usando Jader Barbalho como um pião fictício, um Belzebu desenhado ao bel prazer pelo jornal dos Maioranas. Por oposição a essa figura maligna e mortal, os que o acusam são santificados automaticamente.
Jader se tornou uma obsessão para o grupo Liberal. O jornal continua a dedicar-lhe editoriais quase diários, que nada variam em torno do mesmo tema. O excesso pode ter efeito reverso: fazer o algoz se tornar vítima. Mas o grupo não se importa. Ou melhor: desconsidera esse risco. Parece certo de que uma campanha maciça servirá de inspiração para os que querem golpear o ex-ministro, mesmo que seja um golpe baixo. O problema é que esses combatentes ainda não convenceram a opinião pública que o destino está selado e o Anhanga não voltará ao Senado.
O governador Simão Jatene não parece convencido desse destino. Como Jader pode renascer, conforme já aconteceu outras vezes, prefere manter a aliança. Mas com a maior discrição possível, para não contrariar ainda mais o maior grupo de comunicação local. O Liberal já lhe faz oposição aberta, criando contraste com o Diário do Pará, que fica do lado do tucano – e este, como de hábito, busca o muro mais próximo, ou o rio mais distante, onde haja pesca mais tranquila. O público se vira como cego em tiroteio.
Um exemplo é a mais recente crise da Santa Casa de Misericórdia, em Belém. A primeira versão foi de que dois gêmeos teriam morrido porque a instituição se recusou a receber a mãe, em serviço de parto prematuro, na porta da maternidade, de onde foi despachada por um porteiro. O hospital estava superlotado e a parturiente foi mandada para outros locais, inclusive públicos, onde também não foi atendida.
O episódio ilustra a grave situação da saúde pública, que agoniza e faz sofrer o povo, sobretudo os pobres (mas também a cada vez mais numerosa classe média endividada). Os hospitais públicos não têm o apoio necessário do governo. As instituições privadas são as preferidas, mas o sucesso evidente que alcançaram não tem origem apenas na sua eventual competência administrativa. Está vinculado também à incúria do setor público, à falta de seriedade na gestão e aos numerosos canais de vazamento de verbas. O resultado é que tudo aparenta estar bom e muita coisa está péssima.
A direção da Santa Casa cumpriu sua obrigação ao informar o governo sobre a superlotação do hospital, se antecipando à repetição de mais um escândalo. Mas errou quando, materializada sua previsão, reagiu a ela de forma burocrática, fundada na presunção de que, se o alerta não foi levado a sério, o responsável pela desídia que pague pelo erro. A vida humana devia estar acima dessas circunstâncias.
O governo errou mais ainda, exatamente quando parecia inovar na busca pelo acerto. Os dirigentes da Santa Casa foram imediatamente afastados para a apuração dos fatos. Mas neste caso a medida era dispensável: o exame médico-legal já fora providenciado, as primeiras evidências eram de morte intra-uterina das crianças e as responsabilidades podiam ser partilhadas, tendo a da Santa Casa provavelmente a menor parte da culpa. Talvez por isso sua direção tenha sido logo afastada.
Este novo episódio confirmou a impressão que vem desde o início da atual administração: que lhe falta comando efetivo; que o governador está cada vez mais indeciso e receoso; que delega demais; e que, como efeito, o governo tem sido o sujeito oculto da oração pública. Dentre outros motivos, porque o chefe do executivo não comanda, não decide, não toma posição e não diz a que veio para este segundo mandato. Quem sabe porque, contrariando suas razões doutrinárias, já pensa nas acomodações necessárias para um terceiro mandato. Tomou o rumo do prefeito da capital: sumiu.
A principal das acomodações no Pará segue o movimento pendular entre dois pólos de poder: de um lado, Jader Barbalho; de outro lado, o grupo Liberal. A virulência do conflito entre esses contendores assusta o governador e, de certa forma, o tem imobilizado (e esterilizado o governo, mal avaliado pelo cidadão).
Astuciosamente, O Liberal ressuscita o ex-governador Almir Gabriel, dando-lhe espaço para que ela derrame sua bílis de rancor e ódio sobre o sucessor, que o teria desobedecido; e projeta a imagem de Ana Júlia Carepa, mesmo sabendo que a governadora do PT foi um desastre e que é responsável por parte da prostração do seu sucessor (pelo que não fez e, principalmente, pelo que fez – de – errado). Já o Diário castiga além do merecido a ex-governadora, para evitar que ela seja apresentada como contraste positivo, que, de fato, não é.
Nesse vácuo de liderança, autoridade e responsabilidade surgiu um episódio insólito mesmo na absurda história política paraense. Um carro oficial da principal unidade operacional da Polícia Militar em Belém vai em missão à sede do poder legislativo dar proteção ao extravio (ou roubo, se a preferência for pela linguagem popular) de documentos que comprovavam a assinatura de contratos fraudados, em pleno andamento de processo judicial a respeito. O móvel do roubo são 52 processos administrativos. Não é pouco volume.
Sabe-se quando o veículo saiu do quartel, a quem conduzia, quem deu a ordem, o que foi retirado indevidamente e as conexões do ato. Mas não se sabe a data exata da expedição, não se tem imagens dos envolvidos e outros detalhes que, sem resposta há pelo menos dois meses, alertam o cidadão para o risco de que persista a impunidade dos mandantes, apesar de terem chegado a um extremo de audácia nunca antes assinalado nos anais da violenta política estadual. O que virá depois?
Balançado assim. de um lado para o outro dos pólos de poder, o Pará não segue no rumo do futuro: marca passo nesse jogo de manipulação; se afunda; involui.

Reply · Report Post