O fator de mudança no Caso Sefer(Por Lúcio Flávio Pinto)-

Condenado a 21 anos de prisão por abusar durante quatro anos de uma menor que “adotou” quando ela tinha 9 anos, o ex-deputado estadual, médico e empresário Luiz Afonso Sefer foi absolvido por 2 a 1 em uma das câmara criminais do TJE. Por que a sentença do juiz de 1º grau foi reformada?

O médico, empresário e ex-deputado estadual Luiz Afonso Proença Sefer, de 56 anos, foi novamente julgado, no dia 6, por uma das câmaras criminais isoladas do Tribunal de Justiça do Estado, já condenado, na instância judicial inferior, pela prática de um dos crimes mais hediondos que o ser humano pode cometer: a pedofilia. Recebeu a pena de 21 anos de prisão, acrescida do pagamento de 120 mil reais como indenização à família de sua vítima. Foi denunciado e sentenciado por abusar sexualmente de uma menor, que abrigara em sua casa, ao longo de quatro anos, iniciados quando a vítima tinha apenas 9 anos de idade.
Pelas características do caso e a posição social do réu, o processo se transformou num escândalo de dimensão nacional. Trouxe a Belém integrantes da CPI da Pedofilia que funciona no Senado e provocou a reação de uma comissão que trata do mesmo tema na Assembléia Legislativa do Estado. A repercussão mobilizou também entidades de defesa dos interesses da criança e do adolescente. E teve intensa repercussão política.
Para não perder seus direitos políticos, o deputado renunciou à liderança do DEM (sob pressão dos seus dirigentes locais), da – por ironia – suplência na CPI da Pedofilia e, por fim, ao próprio mandato. Embora viesse de seis reeleições sucessivas, a última das quais como o 2º mais votado, com quase 62 mil votos (1,98% do total), seus pares estavam dispostos a puni-lo com a cassação por quebra do decoro parlamentar.
A absolvição do réu pela 3ª Câmara Criminal Isolada do TJE, devido a contundência da sua manifestação, em contraste brutal com o resultado da sentença dada pela juíza Maria das Graças Alfaia Fonseca, da vara dos crimes contra a criança e o adolescente de Belém, e com a expectativa da opinião pública, colocou mais uma vez em cheque a lisura da justiça do Pará. A reação da sociedade foi negativa.
Embora o relator do processo, responsável pelo voto vencedor, desembargador João José da Silva Maroja, tenha atribuído à influência da imprensa e, através dela, dos grupos de pressão social a distorção contida na sentença condenatória, o autor do voto discordante na câmara deu mais motivos às críticas. O juiz de 1ª instância Altemar da Silva Paes manteve a decisão. Disse ter certeza de que “não teria paz na consciência se escolhesse a absolvição”.
Paes foi convocado para atuar na 3ª câmara criminal do tribunal depois de uma sucessão de incidentes, com férias e deslocamentos de magistrados e a declaração de suspeição formulada por quatro desembargadores para funcionar no feito. Esses desembargadores não precisaram justificar a decisão tomada, por alegarem motivo de foro íntimo. Só são obrigados a declinar os motivos do ato em sessão secreta do Conselho da Magistratura, se algum dos integrantes dos processos requerer essa providência, o que é muito raro de acontecer.
Com o afastamento voluntário dos demais desembargadores que integram a câmara, a grave decisão do colegiado foi tomada pela diferença de um único voto. O relator João Maroja, que havia indeferido o primeiro pedido de prisão preventiva contra Sefer, quando ele ainda tinha direito a foro privilegiado (no Tribunal), em virtude da sua condição de deputado (ao renunciar ao mandato, o processo foi remetido ao juízo singular, onde foi instruído), e o revisor, Raimundo Holanda Reis, se pronunciaram contra a sentença de origem. O juiz convocado a manteve. Segundo disse, para atender a sua consciência, que lhe impunha a confirmação da condenação. A declaração incomodou o relator, que também se declarou em paz com sua consciência ao absolver o réu.
Os mesmos autos que levaram a juíza Maria da Graça Alfaia, em junho do ano passado, a aplicar pena tão dura ao denunciado, proporcional à gravidade do crime que lhe foi atribuído, serviram para uma reformulação completa do julgamento. Na sua longa sentença, depois de examinar todos os itens do processo, a juíza chegou à conclusão de que a versão do réu “não encontra respaldo no conteúdo probatório dos autos”.
Estava tão segura de sua posição que aceitou a apelação do então advogado de Sefer, Osvaldo Serrão, mesmo a peça tendo sido protocolada fora do prazo. Mas como só o advogado fora intimado da sentença, porque o réu não foi localizado pelo oficial de justiça para tomar ciência do ato, a magistrada recebeu o recurso. Considerou que a necessidade de ampla defesa do réu exige a dupla intimação (do réu e do advogado) Mas podia ter declarado a intempestividade do recurso, dando mais trabalho à defesa do ex-parlamentar.
Mudança tão drástica no entendimento deve ser atribuída a um elemento novo na instrução processual: o surgimento do ex-ministro da justiça do governo Lula na defesa de Luiz Sefer. Responsável pela indicação de ministros para o Supremo Tribunal Federal e uma das pessoas mais influentes no topo do poder desde que o PT o ocupou com Lula, em 2003, Márcio Thomaz Bastos fez a diferença.
Abstraindo-se o fato de que ele não costuma entrar nas questões judiciais para as quais é contratado sem uma abordagem preliminar junto aos magistrados e suas circunstâncias, e sua eficiência como criminalista e todo poderoso do mundo jurídico (sobretudo, dos seus bastidores), ele fez jus aos seus milionários honorários (avaliados por seus colegas entre 2 milhões e 6 milhões de reais) com a brilhante sustentação oral que empreendeu durante o julgamento.
Talvez tivesse conseguido ser brilhante mesmo se enfrentasse a contradita no ato. Surpreendentemente, porém, tanto a representante do Ministério Público do Estado quanto o assistente de acusação abriram mão dessa importante prerrogativa, fundamental principalmente no fórum criminal, cujos julgamentos se amoldam pelo padrão do tribunal do júri, quando ocorre a oralidade.
A procuradora Dulcelinda Lobato Pantoja se eximiu de reagir de pronto, conforme alguns observadores podiam entender ser seu indeclinável dever de ofício, como dona da ação penal, sob a discutível alegação que as peças produzidas por seu colega de 1º grau, Ricardo Albuquerque da Silva, diziam tudo e eram suficientes para sustentar a confirmação da sentença original. A ser assim, elimine-se a presença do MP na instância recursal.
Não entendeu da mesma maneira o competente e talentoso advogado Márcio Thomaz Bastos. Com argúcia, ele explorou contradições e insuficiências das provas juntadas aos autos para inverter completamente o enredo que levou à condenação o seu cliente. Depois de sua didática oratória, a narrativa foi invertida: a menor fora seviciada pelo próprio pai entre os 4 e os 7 anos, quando uma tia a adotou e, dois anos depois, ela foi morar no apartamento do então deputado estadual, dono de uma rede de hospitais muito ativos no interior do Estado, inclusive na região onde se localiza Mocajuba, onde nasceu e morava a menor S. B. G..
O pai, Manoel Rodrigues, teria relações sexuais com outra filha. G.B.R., quando ela ainda era criança e a quem engravidou, em circunstâncias semelhantes às mantidas com sua segunda filha. Seria um homem sem princípios e, mesmo acusado por várias testemunhas, de dentro e de fora da família, inclusive pela filha abusada, não foi ouvido no processo.
A juíza não pediu a quebra do sigilo de dois telefones celulares que a menina tida por explorada pelo ex-deputado usava, teria desconsiderado as perícias psicológicas, que mostrariam a inversão da realidade nas duas posições (do réu e da vítima) nem os testemunhos favoráveis a Sefer, inclusive de pessoas chamadas a depor pela acusação.
O ex-deputado teria sido vítima de uma ampla conspiração, inspirada tanto por organizações sociais e religiosas quanto por políticos oportunistas, que o condenara sem a menor consideração pelo conteúdo dos autos. Mesmo as evidências seriam favoráveis a Sefer. Ele não se enquadraria no perfil típico do pedófilo, que comete abusos continuados. Ninguém se apresentou como vítima dele, mesmo com o amplo destaque dado ao caso. Nenhum antecedente indicava sua inclinação para esse ato hediondo. Sua biografia era a de um homem correto.
Além de tudo isso, suas duas especialidades médicas, de ginecologista e proctologista, lhe teriam dado a oportunidade de abusar de pacientes se tivesse a perversão. Ao fazer o relatório da sua sentença, a juíza Maria das Graças se referiu ao trecho do depoimento dado à polícia na qual o médico negava ser ginecologista. No mesmo dia da sua absolvição, Sefer disse que já realizou 21 mil cirurgias em sua carreira (o que dá uma média excepcionalmente alta para menos de 30 anos de atividade profissional, acrescida da sua condição de dono de hospitais e parlamentar por mais de 20 anos), sem sofrer qualquer tipo de reclamação junto ao Conselho Regional de Medicina (não consultado porque não interessava aos propósitos da “armação da delegada, do juiz e do promotor”, conforme denunciou em destacada entrevista a O Liberal, com direito a uma imagem de Nossa Senhora de Nazaré convenientemente destacada ao fundo, em plena véspera do Círio).
Sefer chegou a afirmar que a delegada Christiane Ferreira da Silva Lobato o perseguiu no inquérito policial para se vingar de sua irmã, Maria Amélia Sefer Figueiredo, por ter impedido a delegada de ser removida do interior para Belém, quando era responsável pela secretaria de segurança pública do Estado.
Livre do peso da condenação, o empresário diz que agora vai reagir à perseguição injusta de que se diz vítima, processando na justiça seus caluniadores, escrevendo artigos em jornal (provavelmente no mesmo O Liberal, que voltou a apoiá-lo abertamente) e um livro, quando apontará os responsáveis pela farsa, que tanto prejuízo lhe causou e à sua família. Claro que ainda terá que se submeter à continuidade do processo. O MPE, omisso na câmara, deverá apelar da decisão para as instâncias superiores, conforme os desdobramentos recursais. Mas já numa posição muito menos favorável.
A sorte sobre o desfecho desse caso ainda dependerá da atenção que lhe for dispensada – dentro e fora dos muros do judiciário e de seus extensos bastidores – pela imprensa e a opinião pública.
O primeiro ponto a ser levado em consideração diz respeito à razão do ingresso do caríssimo advogado Márcio Thomaz Bastos na defesa de Sefer, já na instância recursal. Se ele não podia acrescentar prova alguma às já existentes nos autos e se a apelação, de responsabilidade do advogado Osvaldo Serrão, que atuava à frente da causa até então, fora bem elaborada, por que não prosseguir na lide sem o acréscimo de uma despesa de tão grande valor, mesmo para uma pessoa rica, como é o ex-deputado?
A resposta estaria na oportunidade criada pela sustentação oral, tanto mais eficaz quanto menos os julgadores têm domínio sobre o conteúdo dos autos, circunstância característica da instrução processual no Pará e no Brasil (há magistrados que nem sabem sobre o quê estão decidindo). Circunstância essa que acentua ainda mais o desperdício dessa ferramenta essencial pelo Ministério Público e a assistência da acusação, com ônus muito maior para o MP. O ex-ministro, responsável por tantos milagres jurídicos (e também de outra natureza), iria fazer a diferença, com o peso do seu nome e das suas articulações.
Na essência, porém, a sustentação do ex-ministro da justiça repetiu as teses já apresentadas pela defesa. Certamente seu desempenho ultrapassou o nível de um advogado competente, mas regular, como o paraense. A reorganização mais clara e lógica (esta, segundo o mestre criminal, a pedra de toque do processo penal) dos argumentos também favoreceu a sensibilização dos desembargadores que aderiram às razões da defesa.
Mas não o juiz convocado para substituir as desembargadoras que renunciaram ao seu dever de ofício, sem apresentar razões objetivas pela possibilidade que a regra legal lhes proporciona de alegar o foro íntimo (que é subjetivo, mas não em grau absoluto). Instrutor e julgador solitário no 1º grau jurisdicional, o juiz convocado pronunciou seu voto sensibilizado pelas peças acusatórias, incluindo a sentença. Sua consciência resistiu ao glamour, à dialética e ao poder de Thomaz Bastos. Teria sido por sua proximidade dos réus, que comparecem à sua presença, cuja face não se projeta diante dos desembargadores, que decidem em abstrato, sem a pressão do pulsar de vida, que os autos confinam em palavras, e entre as paredes de um palácio?
Todos que tiveram a oportunidade de ouvir a vítima depor se impressionaram pela contundência das suas afirmativas e o tom dramático das suas expressões. Traduzida pela oratória do brilhante e experiente criminalista, a menor, que tinha 9 anos quando foi morar na casa do ex-deputado e 13 quando a ação judicial começou, em 2009, foi “repaginada”, como se diz no meio social em que o ex-ministro e o ex-deputado são fluentes (além de afluentes).
Surgiu como uma criança precocemente devassa, cujos eventuais princípios morais foram destruídos antes da oportunidade de se formarem na sua personalidade, por ter sido concubina do próprio pai, em crime ainda mais hediondo (à ótica criminal, problematizada pela visão psicanalítica): o incesto. Desvirginada na tenra infância, a hoje pré-adolescente perdeu as referências de valor, se tornou promíscua e teve diversas e distintas relações sexuais.
Esse ser condenável foi se degradando durante os quatro anos em que viveu no mesmo teto do ex-deputado. Ele trouxe a menina de 9 anos do interior do Estado para Belém, com o propósito de educá-la e torná-la melhor. Mas não a conhecia nem à sua família, de cujos nomes não conseguiu se lembrar em seus depoimentos à polícia e à justiça.
S,B.G. foi “encomendada” a Estélio Guimarães, vereador em Mocajuba, como se o Pará ainda vivesse na era da escravidão branca de crianças e adolescentes. Sefer queria uma menina com idade entre 8 e 9 anos, para “fazer companhia a uma outra menina”, que morava com ele. Estélio transmitiu a encomenda a quem podia atendê-la. Joaquim Oliveira Santos conseguiu muito rápido que a avó de S.B.G lhe entregasse a menina para morar na casa de alguém de tanto prestígio como o então deputado.
O acerto foi feito em torno desse compromisso: a menor seria dama de companhia. Só que a menina não era filha de Sefer: era S., de 12 anos, que trabalhava no apartamento do médico, num prédio de luxo no bairro do Jurunas, onde também moram seus dois filhos adolescentes. Desde que se divorciou, Sefer não voltou a casar. Sua namorada há quase dois anos, Tatiana de Nazaré Coelho Braga, foi também sua testemunha no processo.
Apesar da promessa, o empresário não prestou a menor atenção aos sinais evidentes da vida desregrada de sua filha adotiva (ainda que não do ponto de vista da formalidade jurídica), má aluna numa escola pública no bairro da Condor (para a qual ia a pé), que nunca conseguiu passar de ano, gazeteira, baderneira, quase uma prostituta. Pelo contrário: dava-lhe presentes e atenções que, se em nada ajudaram a formação e a educação da menina, a seduziam a permanecer ao lado do seu “anfitrião”.
S.B.G. disse que começou a ser estuprada dois dias depois de ter chegado à residência de Sefer. As agressões foram se tonando cada vez mais sórdidas. A penetração seria antecipada pelo uso de um aparelho médico, o “bico de pato”, que, posto na vagina, possibilita exames íntimos da mulher. A menor permaneceu na condição de absoluta ilegalidade até que seu patrão (ou tutor, ou, segundo a acusação, estuprador) decidiu requerer sua guarda provisória. O motivo: queria levá-la para o apartamento que possui na avenida Atlântica, em plena Copacabana, no Rio de Janeiro, onde, aliás, seria preso (com abuso de poder pelos policiais cariocas, instruídos a agir com violência pelos policiais paraenses, conforme sua queixa).
Sefer diz que tentou por três vezes devolver a menor à sua família, sem êxito. Era generoso até demais e tolerante em excesso. Na época não parecia tão impressionado pelo mau comportamento da menina, que, segundo o porteiro do prédio, José Maria de Oliveira Franco, saía à noite e só voltava de madrugada. Já Jorgeane Correa Alves, filha de uma funcionária do ex-deputado, declarou como testemunha que “encontrou a menor numa festa noturna em companhia de outros rapazes.
Tais aventuras, realizadas por uma menina com idade entre 9 e 13 anos, não seriam perceptíveis pelo seu responsável, o chefe da família que a abrigou? Parece que Sefer não dava muita atenção ao fato de que se havia separado de sua esposa (com quem manteve ruidoso litígio), e que tinha filhos homens em sua casa, um dos quais é apontado pela menor como autor também de outro estupro que sofreu. Se não cometeu o hediondo crime de abuso sexual, Luiz Afonso Sefer foi péssimo responsável por uma menor.
O crime maior ainda precisa continuar a ser investigado, inclusive com a incorporação das críticas feitas pela defesa, algumas consistentes. Mas há outro elemento descurado na apreciação, talvez porque a vítima é desconhecida, pobre e desassistida pelos poderosos da cidade: em que condições ela foi “adotada”, quais os compromissos assumidos pelo novo responsável, como foi sua vida nos quatro anos em que a manteve em seu apartamento? Essas questões ainda não foram adequadamente respondidas. Mesmo que sejam laterais ao eixo da questão em apreciação, dizem respeito aos direitos de um ser humano colocado em más condições de vida.
O médico e empresário Luiz Afonso Sefer tem todo direito à defesa da sua honra e ao revide aos que podem lhe ter causado tantos prejuízos sem causa justa (ou pior ainda: por oportunismo, maquiavelismo e má fé). Mas por que não teve a mesma atitude quando, em defesa do seu mandato sob ameaça e, sobretudo, a continuidade da sua carreira política, sob o risco de oito anos de inelegibilidade, renunciou ao mandato? Por que não se expôs à cassação, se estava tão certo da justeza da sua campanha? Será que não condicionou sua honra pessoal e de sua família a um interesse menor, material, embora de grande significado, o da preservação da carreira política, que projetou ao máximo sua condição profissional de médico e empresário de saúde, tornando-o milionário, a ponto de poder arcar com uma caríssima contratação pçara poder ser absolvido?
A história, como se vê, ainda não acabou.

Reply · Report Post