Cidade de Deus faz dez anos com documentário e lançamento em quadrinhos.

Comemorações incluem versão em HQ

Trabalho gráfico de João Ricardo Bizzaro e MJ Macedo, em fase de finalização, retrata fielmente 'Cidade de Deus'

História do filme será dividida em três volumes, que devem chegar às lojas a partir de agosto deste ano

Reprodução

Página de "Cidade de deus - a HQ", publicação que reproduz cenas do filme e que deve sair em agosto, em três volumes
RODRIGO SALEM
DE SÃO PAULO
As comemorações dos dez anos de "Cidade de Deus" não ficarão restritas aos cinemas. Uma adaptação para quadrinhos do longa de Fernando Meirelles está em fase final de produção e deve ser lançada em agosto.

A história será dividida em três volumes de 70 páginas, com arte de João Ricardo

Bizzaro e MJ Macedo, reproduzindo de forma fiel as cenas da produção.

"O filme está tendo uma vida longa na memória de muita gente, então achei interessante ter os enquadramentos e os diálogos impressos, mas dentro de outra perspectiva", explica Meirelles.

O projeto "Cidade de Deus - A HQ" rondava os corredores da produtora O2 desde 2009, mas nenhuma proposta agradava ao cineasta.

"Foram dois anos experimentando e testando artistas. Como não era um trabalho oficial, fazíamos nas horas vagas", conta o responsável pela produção da revista, Ricardo Laganaro, coordenador do departamento de 3D e diretor de cena da O2.

No início de 2011, Bizzaro apresentou sua ideia de arte realista para a adaptação ao diretor. Meirelles finalmente conseguiu visualizar o gibi e deu sinal verde para a equipe tocar o projeto.

"Pegamos o filme e o extraímos quadro a quadro em forma de páginas", explica Laganaro. "Fernando, então, dizia os diálogos mais importantes que virariam balões."

O segundo passo foi transformar as cenas em desenhos que funcionassem como uma HQ independente. "Apesar de o longa servir de base, fizemos tudo de forma artesanal", conta o produtor.

O processo levou mais de um ano, e as páginas já estão prontas desde março passado. Mas, devido ao realismo da arte, os atores de "Cidade de Deus" precisam autorizar o uso de suas imagens.

"Estamos um pouco atrasados, pois não consegui a autorização de todos",diz Meirelles, contando que, agora, aqueles que não deram sua autorização ou que não puderam ser contatados estão sendo redesenhados.

A O2 está negociando a publicação com algumas editoras. A intenção é lançar os três volumes em meses consecutivos e depois reuni-los em uma edição de luxo.

DIFERENÇAS

Bizzaro é o responsável pela arte do primeiro capítulo, sobre a infância dos amigos Dadinho e Bené, enquanto MJ Macedo cuida das duas partes restantes, centradas na ascensão de Zé Pequeno.

"No filme, essas etapas foram concebidas de formas bem diferentes. Tentamos transpor essas diferenças para a HQ", diz Laganaro.

"Gosto de quadrinhos mais experimentais, com narrativas inventivas", comenta o cineasta, sobre a ideia de ter visuais únicos para cada arco narrativo da HQ.

O fã, porém, não deve esperar muita novidade. "Havia a proposta de ilustrar trechos não filmados do roteiro, mas o número de páginas ficaria muito grande", conta Laganaro. "Mas haverá alguns quadros diferentes do original e alguns elementos que surpreenderão."




De Zé Pequeno a gente grande

Dez anos depois de 'Cidade de Deus', documentário encontra atores entre fama e anonimato

MATHEUS MAGENTA
ENVIADO ESPECIAL AO RIO
Ao longo dos dez anos que sucederam sua pré-estreia no Festival de Cannes, o filme "Cidade de Deus" viu sua estética reverberar no cinema brasileiro em obras como "Tropa de Elite" e seu elenco de jovens atores se dividir entre o sucesso, o ostracismo e a marginalidade.

Um deles, que fez parte do criminoso Trio Ternura no filme como o personagem Alicate, se envolveu com drogas e hoje está desaparecido.

"Ele saiu da ficção para a realidade. Virou traficante e hoje está desaparecido. O menino tinha arte, mas ele não soube administrar a potência do sucesso que o filme teve."

O relato acima sobre o destino incerto de Jefechander Suplino foi feito à Folha pelo cineasta Luciano Vidigal.

Ao lado de Cavi Borges, ele filma um documentário para mostrar o destino dos atores dez anos após a primeira exibição do longa de Fernando Meirelles, em maio de 2002.

"Uns souberam aproveitar as oportunidades, outros viram que não tinham jeito para a coisa e seguiram outras carreiras. E há aqueles que se descobriram atores ou se deslumbraram, se beneficiaram na época, mas depois perderam o rumo", relatou Borges.

O documentário mostrará o destino de quase 30 atores. Metade continua atuando, quatro se envolveram com crimes e drogas e o restante desistiu ou não conseguiu seguir a carreira artística.

Com dificuldades financeiras para concluir o documentário, eles correm contra o tempo para não perder a efeméride de dez anos e conseguir participar do Festival do Rio, em setembro.

Felipe Paulino, hoje com 18 anos, atuou em uma das cenas mais polêmicas do longa. Seu personagem leva de Zé Pequeno (Leandro Firmino) um tiro no pé.

Após o filme, enfrentou problemas familiares na administração de sua carreira de ator mirim. Hoje, é menor aprendiz em um hotel do Rio.

"Eu ainda tenho o sonho de ser ator", afirmou. Já o colega de cena hoje se sustenta com os cachês de ator.

Firmino atuou em séries como "A Diarista" (Globo), e filmes como o inédito "Totalmente Inocentes", de Rodrigo Bittencourt, paródia do gênero "favela movie", consagrado com "Cidade de Deus".

Apesar do pequeno papel que teve no longa, Thiago Martins desponta hoje como um dos galãs da novela das 21h, "Avenida Brasil" (Globo).

Preocupados com o destino dos atores após o filme, Meirelles e a codiretora Kátia Lund ajudaram a transformar a oficina de interpretação criada para os quase 200 jovens pré-selecionados para a produção em um projeto social com uma produtora e uma escola de cinema.

Chamado hoje de Cinema Nosso, o projeto é presidido por um dos atores do filme, Luis Carlos Nascimento.

ESTIGMA

Baseado no livro homônimo de Paulo Lins -que levou 15 anos até lançar outra obra (leia crítica na pág. E4)-, o filme retrata a comunidade carioca desde a criação nos anos 1960 até os anos 1980, durante uma guerra entre as gangues de Zé Pequeno e Mané Galinha (Seu Jorge).

O local tem hoje 36 mil habitantes, segundo o IBGE. Parte deles diz que, após o filme, ficou estigmatizada em outras regiões do Rio.

"No filme, 99% das pessoas eram criminosas. Na época, quem dizia que era da Cidade de Deus não conseguia emprego. Hoje ainda há preconceito", disse o morador Roberto de Carvalho, 55.

"O problema é a generalização. Não se pode dizer que todo jovem de cor que mora nesses locais é violento", diz a antropóloga Alba Zaluar, professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

"Qual favela não é estigmatizada?", rebate Lins. Para ele, o livro e o filme foram essenciais para atrair investimentos públicos para o local.

Polêmico, filme foi sucesso de público e crítica

DO ENVIADO AO RIO
Ao levar mais de 3,3 milhões de pessoas aos cinemas brasileiros, "Cidade de Deus" se tornou em 2002 o maior sucesso de bilheteria do país desde a retomada da produção nacional, em 1995, até aquele momento.

A recepção positiva (com ecos em outros países) se repetiu entre os críticos.

Naquele ano, o jornal britânico "Guardian" o definiu como "obra-prima" -mais tarde, o listaria entre os 25 melhores filmes de ação ou guerra de todos os tempos.

Além de abrir portas para outros diretores e gêneros no exterior, "Cidade de Deus" foi indicado ao Globo de Ouro de melhor filme estrangeiro e a quatro Oscars (fotografia, direção, roteiro adaptado e montagem), mas não venceu.

No Brasil, gerou debates sobre ética e estética. Ivana Bentes, professora de comunicação e cultura na Universidade Federal do Rio de Janeiro, cunhou o termo "cosmética da fome", em contraponto à "estética da fome" do cinema novo.

Para ela, o filme se tornou um marco na discussão sobre a construção de discursos e imaginários em torno da pobreza no cinema nacional e sobre como filmá-la "sem cair na pieguice, no paternalismo, nos clichês".

"Ele contribuiu para o 'folclore-mundo' em torno das favelas brasileiras e fez uma espécie de 'inclusão visual' [do local], mas é um cartão-postal perverso pelo negativo", diz à Folha.

(MM)

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